domingo, 31 de janeiro de 2010

Machado e as Olimpíadas

(Artigo de opinião de minha autoria publicado no jornal goiano O Popular em 16 de outubro de 2009.)



O escritor Machado de Assis, um dos mais sofisticados narradores que a cidade do Rio já revelou, contemplava o mundo sem nunca ter saído de seu estado (seus problemas de saúde não lhe permitiam viajar de navio, na época o transporte de longa distância mais utilizado). Irônico, reflexionava sobre os meios e impulsos contraditórios que conduzem as ações humanas, relacionando-os sempre ao contexto social mais amplo.

Machado certamente se fartaria de material literário com o histórico acontecimento que, pouco mais de um século após sua morte, afirmou a importância de sua cidade natal e chancelou o papel do Brasil como potência emergente no mundo. A votação escalonada que na semana passada elegeu o Rio sede das Olimpíadas de 2016, em muito se diverge do embrionário ambiente olímpico dos tempos do escritor, homem que nunca imaginaria a colossal articulação de dinheiro, imagem, prestígio, patriotismo e bastidores para que uma localidade se converta no epicentro esportivo e conjuntural do planeta por duas semanas a cada quatro anos.

Além de trazer os Jogos pela primeira vez para a América do Sul, a vitória foi marcante não só pela qualidade das concorrentes – Madri, Tóquio e Chicago são cidades de primeira grandeza no cenário internacional –, como também pelo nobre quilate dos delegados de suas candidaturas. Ter arrebatado a oportunidade de ouro do casal Obama e de Oprah Winfrey, do Rei Juan Carlos e dos primeiros-ministros José Luis Zapatero (Espanha) e Yukio Hatoyama (Japão) plasmou no consciente e inconsciente coletivo brasileiros uma saga lilliputiana e revolucionária comparável às insurreições independentistas do período colonial. "Yes, we créu!", zombou no mesmo dia um divertido vídeo no You Tube. Já o bolivariano Hugo Chávez alardeou sua felicidade para um auditório lotado em Caracas, conclamando-o a dar "un aplauso fuerte a Brasil". Somos, afinal, o florão da América iluminados ao sol do novo mundo!

Esclareço que sou a favor da empreitada: além de carioca como Machado, pratico voleibol e seduz-me enormemente a idéia de ver o esporte contribuir na transformação da dura realidade da Cidade Maravilhosa. Por isto relativizo os argumentos negativos. Os que se fixam na violência do Rio deveriam saber que na rica e moderna Joanesburgo, cidade da África do Sul onde acontecerão 15 partidas na Copa do Mundo de 2010 (incluindo a inaugural e a final), uma agressiva estratégia de segurança pública gerou ironicamente um dos mais altos índices de proteção particular do mundo: os guetos mais pobres e violentos foram isolados e a cidade está apinhada de cercas elétricas, arame farpado, câmeras de inspeção e placas com os dizeres “resposta armada” em milhares de propriedades. Dados do Instituto Nacional de Estudos da Segurança, não-confiáveis para boa parte dos sul-africanos, indicam que a abordagem draconiana tem surtido efeito: o índice de homicídios, que em 1995 era de 66,9 por 100 mil habitantes, despencou para 38,6 em 2008. (No Rio, a mesma taxa era de 53 por 100.000 habitantes em 2006, segundo um estudo da ONU.)

Há esperanças de que este estado policialesco não se repetirá em Rio 2016. De acordo com o projeto técnico do Comitê Organizador, a responsabilidade pela segurança dos Jogos será da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) do Ministério da Justiça, em conjunto com as agências federais, estaduais e municipais. Os planos serão desenvolvidos com base em programas de prevenção pró-ativos, como o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), que prioriza o envolvimento das comunidades na prevenção da violência, a valorização dos profissionais de segurança pública, a reestruturação do sistema penitenciário e o combate à corrupção policial.

Quanto à corrupção e as apropriações indevidas de fundos que muita gente antecipa – a história brasileira é um amplo registro de dirigentes desavergonhados fraudando os cofres públicos –, a Prefeitura do Rio proveu uma dose de alívio ao lançar na última quinta o site Transparência Olímpica. Nele, o internauta terá acesso às datas de início e conclusão das obras para os Jogos de 2016, assim como um detalhamento dos desembolsos realizados e dos repasses feitos pelo governo estadual e federal. Também estarão disponíveis o dossiê da candidatura e informações sobre convênios e legislação, além do cidadão poder tirar dúvidas e denunciar.

A pré-candidata do PV à Presidência da República em 2010, senadora Marina Silva, defendeu a criação de um órgão que fiscalize a aplicação do dinheiro público nas obras para a Olimpíada de 2016. E a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, assegurou que o governo federal criará na Controladoria Geral da União (CGU) uma estrutura para fiscalização das mesmas.

São medidas alentadoras, que, somadas à grande boa-vontade popular para a realização dos Jogos, contribuem para a resolução sustentável das dificuldades e percalços de um evento dessa grandeza. A qualidade técnica do projeto carioca impressionou o COI, mas até 2016 muito trabalho e criatividade deverão ser empregados nas questões ambientais, sociais, territoriais e orçamentárias.

Pena que Machado de Assis não percorrerá conosco esta epopéia que pode (ou não) mudar paradigmas. Cético e pessimista, ele escreveu em "Memórias Póstumas de Brás Cubas" que "ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim". De agora a 2016, temos uma excelente oportunidade de construirmos um futuro mais promissor e virtuoso. E Deus queira que tenhamos evoluído para além das mesquinharias de interesse e soluções geradas no compadrismo e privilégio, típicas dos personagens machadianos. Por ora fica-nos a sensação de que, sim, desta vez nós podemos.

(Flávio Britto é professor, jornalista e tradutor.)

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